Aquele relógio bem ao fundo do corredor do hospital me fazia lembrar algo. Silencioso como meu avô. Colorido como a roupa da minha mãe. Grande e gordo como meu pai. Mas algo nele me inquietava. Talvez dois canudinhos que representavam dois braços. Os dedos, parece que foram esquecidos. Suas pernas compridas como as de girafa quase tocavam o chão. Não sei ainda o que havia de errado com ele. O rosto do relógio, acho que queria dizer algo... não sabia o quê.
Um grande ventilador de teto insistia em balançá-lo. Nesse instante, mais ainda eu ficava desconfiada. Sorria pra mim. Um sorriso sério, um sorriso triste, um sorriso travesso, um sorriso alegre. Que sorriso é esse?
Mas não era sempre que eu olhava pra ele. Só quando queria conversa. Quando eu me sentia só. Muito só.
Talvez eu não fosse como as outras crianças, no hospital. Elas ficavam despreocupadas, atentas ao vai-vem das enfermeiras e médicos, aos visitantes, às roupas coloridas, aos sapatos, aos bombons. Elas só viam. Só observavam. Não se incomodavam com o que falavam. Nem escutavam direito. Gente grande fala diferente, você tem que estar atento, todo o tempo. Dizem palavras difíceis, se preocupam com tantas coisas que nem entendo. Então presto atenção pra entender melhor. Tenho todo o tempo do mundo. Criança tem todo o tempo do mundo, não é? Criança pode tudo. Quero então entender gente grande. Quero ser logo gente grande. Estou atenta. Atenta nos corredores deste hospital. Atenta ao relógio que nem sabe falar tic-tac. Atenta às lembranças do meu avô, ao que minha mãe fala do meu pai.
Minha mãe fala que devemos fazer caridade. No hospital há muita gente que precisa de atenção. Atenção é uma coisa boa. Eu gosto de atenção. Meu avô me dá muita atenção. Mas minha mãe não. Ela me dá mais elogio. Que sou educada, quietinha, um docinho de coco. Fico alegre quando escuto isso. Todo mundo olha pra mim e me dá um sorriso do tamanho de um lago!
Mas nem tudo é sorriso. Escuto muito choro nos corredores. Choro alto e choro baixo. Choro sem choro, calado, fechado, acanhado. Fico triste com gente triste. Pra que ficar triste? Aparece logo lágrima. É parecida com a água da chuva. O tempo escurece. A tristeza aparece. O guarda-chuva é o lenço. O amigo das horas difíceis. Muita gente tem um lenço. Quase todo mundo no hospital tem um lenço. Um lenço é chique. O meu é colorido. Muito bonito. Me sinto feliz porque tenho uma coisa que todo mundo tem. Todo mundo adulto. Mas não queria que fosse pra enxugar água da chuva. Melhor seria se a lágrima saísse só no sorriso. Já vi muita gente fazendo isso. Chorar de tanto rir. Muito chique. Chama atenção. Olha, fulana está chorando de tanto rir! E todo mundo olha. Já fiz isso com meu pai, pra chamar atenção dele. Não adiantou muito. Acho que nem ouviu. Ria sem parar. Caiu chuva, formou lago, rio, inundou tudo. Um mar de atenção. Não ouviu. Não ligou.
Mas nos corredores de um hospital tem de tudo. Uma hora faz silêncio, noutra é uma loucura só. Um corre-corre de enfermeiras que gritam na pressa de atender aos pacientes. Mas sempre sobra um tempinho pra elas falarem comigo, dizerem uma palavra de carinho. Umas me chamam de gracinha, outras de fofinha, princesinha, ternurinha, caladinha, santinha, lindinha... e assim vai, num mundão de nomes. Na verdade gosto mais de fofinha. Por quê? Parece que esse nome é uma mistura de todos os outros nomes, é uma salada de nomes. São tantos que acabo esquecendo o verdadeiro. Me chamem do que quiser. Pronto.
Por falar em nomes, também peguei o costume de nomear pessoas. Me divirto em olhar uma fileira de quadros antigos expostos nas paredes dos corredores. A maioria em preto e branco. O cheiro das molduras mostra o quanto são antigas. Tenho alergia e costumo espirrar muitas vezes quando fico muito perto deles. Meu espirro é barulhento, parece um trovão daqueles que faz todo mundo ficar com medo. Meu espirro já é bastante conhecido no hospital. Dizem as más línguas que quando ninguém escuta o barulho durante todo o dia, é porque minha mãe não fez visita naquele dia. Brincadeira de mau gosto. Mas levo na esportiva. E observo aqueles quadros e seus nomes curiosos. Fiz uma classificação científica: as carismáticas, as suportáveis e as lastimáveis. As carismáticas têm um olhar suave ou é sorridente. As suportáveis não têm nem uma coisa nem outra, apenas um nariz afilado e sem rugas. As lastimáveis só têm rugas por toda parte e um olhar e sorriso assustadores. São corujas. As carismáticas são borboletas e suportáveis são camaleões. Essa classificação é longa. Cada uma delas ainda se divide em três grupos. Foi um grande estudo. Muita observação. Certo dia fiz até uma contagem de rugas que não foi nada mole. Pense só!
Muitas vezes esqueço do tempo. Meu olhar fica vagando e me pego olhando uma dessas gravuras e tomo um grande susto. Dou de cara com uma lastimável. Paraliso. Penso o quanto o relógio deve ter sofrido durante todo o tempo de sua existência naquele corredor, olhando sempre pra aquelas incontáveis rugas! Ou pela madrugada, num total silêncio, quando os quadros devem se comunicar longe dos olhos dos humanos. Ei, tá na hora de você usar um creme para pele! Vê se dá um jeito nesse teu cabelo, está sem forma! Meta-se com a sua vida! Estou apenas lhe dando uma sugestão para lhe agradar, ser gentil querida! Gentil ou não gentil, isso não lhe diz respeito! Tudo bem, minha querida! Mas se quiser uns conselhos, estou eu cá com toda boa vontade, afinal sou carismática! E eu sou lastimável, dá pra se ver, não é?
Lembro-me do primeiro dia em que minha mãe me levou na sua primeira visita ao hospital. Na verdade foi bom pra mim, porque eu estava aborrecida com meu pai, e queria manter distância da minha casa. Fiquei emperrada num banco de madeira bem na entrada onde estavam muitos internados. Estava um pouco incomodada com a quantidade de desconhecidos que havia por lá. Resumi meu trabalho na entrega de mensagens às pessoas que passavam pelo corredor ou entravam na tal sala de recuperação.
No segundo dia já me sentia descontraída e não dava tanta importância no fato das pessoas serem diferentes. Meu pai nem havia me aborrecido neste dia e pedi para que minha mãe me levasse mais uma vez. Continuei entregando as mensagens, percebendo que esse gesto deixava as pessoas um tanto felizes. E foi numa dessas ofertas que me deparei com um senhor bastante entristecido, que mal chegou a ler o conteúdo da entrega. Acho que se sentia envergonhado por estar chorando. Muita gente ainda diz que homem não chora. Não concordo muito com isso. Se homem não chorasse então não teria coração também. Se a gente não chorar parece que a água fica dentro e inunda tudo. A tristeza fica como um pão cheio de água, sem gosto. Nem gosto de água nem gosto de pão. E aquele senhor estava mais ou menos assim: inundado. Seu choro estava por dentro, inundando até seu sorriso. Me distanciei dele, sem saber o que fazer. Nessas horas eu não sei o que dizer, me sinto paralisada, sem um pingo de atitude. Fiquei triste também porque não tinha coragem de ser adulta. Parece que ninguém leva criança muito a sério. Mas eu senti seu sofrimento e por dentro eu tive um pensamento de adulta. Nesse momento eu fui inundada por dentro.
Dias depois compareci novamente ao hospital. Amadureci a ideia de ajudar as pessoas necessitadas de uma palavra de conforto, segundo palavras da minha mãe. Como não tinha domínio da palavra, me limitei à entrega de mensagens. Elas às vezes me deixavam confusa sobre o que queriam dizer, mas deviam ser boas, pois todos adoravam receber. É o mínimo que eu poderia fazer por elas. Minha mãe não queria que eu entregasse aos pacientes, pois ela dizia que há o momento certo para fazer isso e que era necessário um acompanhamento de palavras de conforto. Em matéria de palavra ela estava certa: é coisa pra adulto. Com o tempo eu amadureceria e as palavras amadureceriam também. Por enquanto um sorriso aqui e outro acolá era o bastante. Sorriso é contagiante como catapora e não coça. E com o velho eu deveria ter sorrido. Ele é que tirou o meu sorriso. Naquele tarde, meu sorriso ficou congelado e quando descongelou, a água me inundou por dentro. Em vários momentos me lembro dele e cai uma gota em meu coração. Por onde anda aquele senhor de aparência calma, olhar pensativo? Por fora parecia resistente, forte e pronto pra tudo. Mas seu silêncio o distanciava disso. O silêncio muitas vezes fala mais do que palavras e nos ensina também. Só o tempo responderá o que o silêncio cala.
O hábito de visitar o hospital com a minha mãe foi se tornando já uma obrigação. Os funcionários e pacientes já contavam com a nossa presença. Minha mãe sim, colocava a mão na massa. Estava presente nos bons e maus momentos de cada um, já conhecia suas histórias e mantinha um carinho especial, uma coisa quase familiar. O hospital era uma segunda casa.
A minha presença tinha lá sua importância. Parece que todos se preocupavam comigo, eu me sentia quase um paciente. Ficava até acostumada com o paparicado dos pacientes e sem jeito também. Minha ideia era ajudar ao próximo, aos necessitados, e não ser ajudada. Mas a preocupação deles comigo, a importância que davam à minha presença, era como uma distração, uma fuga de seus problemas do dia-a-dia.
Aos poucos fui me tornando também uma filha do hospital. Era pra mim uma segunda casa e eu uma parte da família deles. Me sentia responsável, mesmo criança, em orar por eles. Cuidar deles, no que for preciso. Minha mãe ficava admirada comigo e com minha dedicação. Aos poucos amadurecia em mim o prazer em, naturalmente, ajudar o próximo, sem pedir nada em troca. Esquecia os problemas com o meu pai. Ele começou a me tratar com mais respeito, falava mansinho, conversava comigo. Meu avô dizia até que ele renasceu depois que eu peregrinei pelos caminhos da minha segunda casa. Que ele repetia estar orgulhoso de mim. E isso me deixava completamente feliz. Feliz como criança, feliz como filha, feliz por mim mesma. Eu não me cabia de felicidade. Transbordava. Muitas vezes ria até me emocionar. E disfarçava com meu lencinho de emergência. Muito colorido e charmoso de causar inveja. Tinha uma grande variedade. Um pra cada ocasião.
Costumávamos ir duas vezes por semana e às vezes três, quando a ocasião pedia. Mas isso não atrapalhava minhas tarefas escolares. Os professores diziam até que eu havia melhorado muito em suas disciplinas, na dedicação das tarefas, nas notas, no comportamento. Um verdadeiro milagre em comparação às minhas atitudes do passado. Já havia aborrecido eles muitas vezes. Era outra pessoa agora. E como estava diferente! Lembra daquela vez quando você derrubou a colega no chão, por causa de uma simples caneta? E quando rasgou o caderno de um garoto, só porque ele tinha lhe chamado de feia? Não era motivo você derrubar a coxinha da melhor amiga só porque ela recusou lhe emprestar o caderno! Vejam só!
Eu tinha duas famílias. Dois lares. Dois mundos. Era filha única duas vezes. Única dos meus pais e filha única adotada pela minha segunda casa. Parece que me dividia em duas: a que precisava de carinho e a que dava carinho. Na balança, não sei a que pesava mais. Acho que todos nós temos essa dúvida dentro de nós. Quem somos e quem queremos ser. Onde começa a criança e onde ela termina. E por que deixar de ser criança? Por que não podemos ser uma adulta-criança? Isso é um mistério. Ainda sou criança para decifrar!
O tempo foi passando. Cada momento no hospital, os bons e os maus, contribuíram bastante na minha formação. O passado revive cada vez que damos oportunidade ao nosso pensamento. O passado parece tão forte que inunda o presente e até o substitui. Vejo um cenário bem na minha frente: um leito com um senhor bastante idoso todo vestido de desesperança. Relatava o quanto tinha sido desprezado pelos familiares. Prestava atenção ao seu desabafo. Palavras suaves e profundas. Foi então o momento onde procurei externar minha opinião sobre aquilo. O senhor permaneceu silencioso ao ouvir minhas doces palavras de caridade. Seu olhar fixava um retrato a um canto do quarto. Fora deixado ali por um membro da família. Nele continha seu sorriso, um largo sorriso do passado. Mostrava um momento de descontração com toda a família, a mesma que raramente o visitava agora. E minhas palavras fluíam misturadas com aquela imagem do passado. Elas eram interrompidas com um simples “claro, minha filha”, “isso mesmo”, “obrigado por suas palavras”, “você é uma doce criança”. Foram suas últimas palavras. Pensei que estivesse pego no sono. Apagou. Me deixou ali, sozinha, sem poder fazer algo a mais por ele.
A família surgiu rapidamente. Me procuraram e me contaram que sempre que o visitavam, mesmo brevemente, ele fazia o comentário “que havia uma única filha no hospital a orar por ele”. Isso foi duro de escutar. O significado disso foi a descoberta do que somos e do que representamos nos momentos mais difíceis. Quantas vezes presenciei atitudes frias e indiferentes dos médicos e enfermeiros no hospital? Eles, que deveriam demonstrar atitudes das mais dóceis e cativantes com os pacientes! Mas devemos fazer nossa parte. Não é um regulamento. Deve ser um gesto natural, do coração. Se isso nos falta, então devemos procurar as causas. Será que a prática de amar o próximo não seria um bom começo para acordar o coração?
Isso me marcou muito. Foi há muito e muito tempo.
Muita coisa passou. Muita coisa mudou.
O hospital nem é mais o mesmo. Os funcionários, muitos deles nem existem mais. Como sinto falta daquela época. Eu era muito feliz com meus pais e meu avô. Eles também já se foram.
Lembro dos corredores, daqueles quadros que discutiam nas madrugadas, do relógio que parecia feito pra mim! Me recordo daquele mundo só meu.
Este hospital é diferente, não é de caridade. Parece particular demais. Ninguém pode entrar para me fazer visitas, como eu fazia. Muito silencioso, muito moderno, muito confortável. Mas me sinto só. Minha família foi pouca. Filho, nem um só. Quando me olho no espelho, vejo em mim mesma a única filha, a filha única. Eu mesma. A solidão de mim mesma. Vejo a companhia da minha própria imagem no espelho. Lembro dos conselhos que dava e que me servem agora. Sinto saudades de mim mesma e daquela única filha.
História de Bartolomeu Pinheiro de Lira.